segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente.

A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo (o) mais é sistema e arredores. Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende.

Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite, mas que o não abra. Trazem-me a ciência, como uma faca num prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida, como pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a caixa se ela não tem senão pó?

Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade. Alheios conforme as exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos Deuses, e assim a enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede.

Umas vezes o próprio ritmo da frase exigirá Deus e não Deuses: outras vezes impor-se-ão as duas sílabas de Deuses e mudo verbalmente de universo; outras vezes pesará o contrário, as necessidades de uma rima íntima, um deslocamento do ritmo, um sobressalto de emoção e o politeísmo ou o monoteísmo amolda-se e prefere-se. Os Deuses são uma função do estilo.

6-5-1930, in Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  - 478. (fonte)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos
A visão perturbada de que acima
De nós e compelindo-nos
Agem outras presenças.

Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem.
Os coage e obriga
E eles não nos percebem,

Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem
E nós não desejamos.

16-10-1914

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).  - 54. (fonte)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sangra-me o coração. Tudo que penso

Sangra-me o coração. Tudo que penso
A emoção mo tomou. Sofro esta mágoa
Que é o mundo imoral, regrado e imenso,
No qual o bem é só como um incenso
Que cerca a vida, como a terra a água.

Todos os dias, oiça ou veja, dão
Misérias, males, injustiças — quanto
Pode afligir o estéril coração.
E todo anseio pelo bem é vão,
E a vontade tão vã como é o pranto.

Que Deus duplo nos pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a norma, o natural possível,
E de querer o bem, inútil nível,
Que nunca assenta regular no ser?

Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisível Geómetra regrou
As marés deste mar de mau sargaço —
O mundo fluido, com seu tempo e espaço,
Que ele mesmo não sabe quem criou?

Mas, seja como for, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituída
Por bens obscuros, fórmulas do acaso.

Que plano extinto, antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, porque foi erguido?
Como acabá-lo, templo inconcluído,
Se nos falta o segredo com que erguê-lo?

O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele
Que, esse Deus exumado, reflectiu
A morte e a exumação que houveram dele.
Mas está perdido o selo com que sele
Seu pacto com o vivo que caiu.

Por isso, em sombra e natural desgraça,
Tem que buscar aquilo que perdeu —
Não ela, mas a morte que a repassa,
E vem achar no Verbo a fé e a graça —
A nova vida do que já morreu.

Porque o Verbo é quem Deus era primeiro,
Antes que a morte, que o tornou o mundo,
Corrompesse de mal o mundo inteiro:
E assim no Verbo, que é o Deus terceiro,
A alma volve ao Bem que é o seu fundo.

26-4-1934
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).  - 101.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Fernando Pessoa: Religiosidade na Poesia. Um ensaio

«O Poeta Fernando Pessoa (1888-1935), um dos mais controvertidos artistas do século XX, declarava-se um cristão gnóstico. Apesar disso, não se alinhou a nenhuma instituição religiosa e/ou doutrina estabelecida. Teve na dimensão religiosa a temática preferida. A proposta deste trabalho é compreender a religiosidade em Pessoa por meio da leitura de imagens suscitadas a partir de sua obra, e assim evidenciar na vasta produção significações poéticas que podem ser associadas a signos de religiosidade, seja no conteúdo manifesto ou latente de sua obra. Entende-se que Pessoa, e todos os seus personagens criados por intermédio da heteronímia, fez uso em sua escrita da linguagem simbólica dos mais distintos universos religiosos para compor sua própria forma de religiosidade. Visualiza-se que essa é pluriforme e talvez objetivasse contrariar os limites sociais estabelecidos para o exercício da fé.». Artigo de Anaxsuell Fernando da Silva, disponível aqui.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Definição de religião

Consideramos religiosos casos como o de Shelley, de Carlyle...
Religião é uma atitude do espírito que é
(1) um conhecimento do desconhecido
(2) uma afirmação (isto é, uma metafísica céptica, ou ateísta não é religiosa)
(3) um sistema que não analisa as ideias de que parte, mas as aceita, sem querer apurá-las. (Se não, trata-se de um mero sistema metafísico, com mais ou menos semelhança com uma atitude religiosa). De aí o tendermos a considerar religiosas obras metafísicas vagas. É que falta aquela discussão dos fundamentos que distingue uma metafísica duma atitude religiosa.
A metafísica começa com o espírito crítico. É fácil a metafísica passar para atitude religiosa. Muitas metafísicas não passam de religiões individuais.
Uma metafísica é tanto mais religião quanto mais os seus princípios arbitrariamente assentes são tirados da religião vulgar: como de Carlyle.
Ora uma religião - isto é, uma metafísica em bases - pode ter uma de três causas:
(1) uma «intuição», isto é, o metafísico assenta em determinados princípios porque os considera acima ou fora da lógica, atingíveis por um outro sentido, que não a inteligência.
(2) uma autoridade - isto é, o indivíduo aceita de fora, de outrem, esses fundamentos, sem os discutir; tal o caso da apologética religiosa.
(3) uma revelação - i[sto] é, conhecimento que se supõe recebido a maneira do exterior, mas ou dum outro exterior que não a natureza, ou de outra maneira, como que por outros sentidos, ou, ainda que pelos mesmos sentidos, numa ocasião especial e formando um milagre.
Ora destes 3 fenómenos só um nos dá o sentido social da religião: é a autoridade. A religião (social) é aquela que se definiu, aceite por imposição daqueles que constituem autoridade para quem a recebe.
Condições de aceitação social de uma religião: (a) ligar-se ao sentimento social geral, isto é, à síntese mais vulgar em as almas dos fenómenos sociais da época; (b) (...)
Condições de originação de uma religião:
(A) transformações sociais, porque estas envolvem:
(a) perturbações que causam uma insegurança geral, e uma necessidade de fugir à realidade, o que o geral dos homens só pode fazer com emoções, e não com acto ou pensamento, (b) uma decadência e, portanto, uma geral receptividade nervosa maior, (c) uma desagregação do estado social e, portanto, uma alteração, incerteza e perturbação nas ideias gerais nascidas desse estado ou fórmula social e, portanto co-fixas com ele. - Estes fenómenos são necessários para que uma religião possa surgir, mas, sendo só eles, ela não surgirá; transformar-se-á, apenas, aquela que existe.
(B) Contactos culturais (com outras religiões), porque estes (a) aguçam, sobretudo nas camadas superiores, o espírito crítico (aliás anormalmente forte nas decadências) e, ao mesmo tempo que arruinam a fé estabelecida, chamam a atenção para as crenças estranhas; (b) (…)

António Mora


sem data
in Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.  - 395.
N. do A.: «Prolegómenos».

sábado, 9 de janeiro de 2016

Pessoa, médium

Lisboa, 24 de Junho de 1916

Minha querida Tia:

Muito lhe agradeço a sua carta de 13 e os parabéns que me traz. Muito agradeço também a carta do Raúl de 22 de Maio, a que responderei brevemente; creio que assim posso prometer, porque me sinto agora já um pouco melhor, já mais apto a não ter a inércia que tenho tido e que, como calcula, tem sido devida aos sucessivos choques nervosos por que tenho passado.
Felizmente que chegaram (enfim!) de Pretória notícias acentuadamente boas. Excepto no que respeita ao braço, que está demorando em recuperar o movimento, o estado da Mamã melhorou muito. O estado mental está, enfim, normal. Aquela confusão mental que ela tinha, e que era o que mais me impressionava, desapareceu. E ela já sai do quarto, passando umas horas por dia na casa de jantar.
Não sei o tratamento empregado agora. Sei que, a princípio, empregaram, com efeito, os choques eléctricos, mas suspenderam esse tratamento, porque, ao que parece, incomodava demasiadamente a doente. E suponho que naquela altura da doença não seria bom o incómodo natural dos choques. Se assim foi, já terão, suponho, retomado esse tratamento.
Por enquanto não há nada em que, de positivo, se deva assentar com respeito à guerra e às tropas de aqui irem para fora. E creio, mesmo, que os rapazes na situação do Raúl não correm, por enquanto, grande risco de serem chamados. É claro que não posso afirmar isto, mas é o que consta aqui. Já se o Raúl estivesse cá, naturalmente teria, pelo menos, a maçada de uma «escola de oficiais» ou qualquer aparelho parecido.
Sobre o estado nervoso em que tenho vivido, não tenho passado mal ultimamente. Também creio que não tem havido novidade na família, salvo que a Joaquina está umas vezes melhor, outras pior. Como eu tinha previsto, pela astrologia, a situação do Mário não só melhorou, mas parece tender para melhorar cada vez mais.
Vamos agora ao caso misterioso que a interessa e que a tia Anica diz não poder calcular o que seja. Sim, não calcula, decerto eu próprio é o que menos esperaria.
O facto é o seguinte. Aí por fins de Março (se não me engano) comecei a ser médium. Imagine! Eu, que (como deve recordar-se) era um elemento atrasador nas sessões semiespíritas que fazíamos, comecei, de repente, com a escrita automática. Estava uma vez em casa, de noite, tendo vindo da Brasileira, quando senti a vontade de, literalmente, pegar numa caneta e pô-la sobre o papel. É claro que depois é que dei por o facto de que tinha sido esse impulso. No momento, não reparei no facto, tomei-o como o facto, natural em quem está distraído, de pegar numa pena para fazer rabiscos. Nessa primeira sessão comecei por a assinatura (bem conhecida de mim) «Manuel Gualdino da Cunha». Eu nem de longe estava pensando no tio Cunha. Depois escrevi mais umas cousas, sem relevo, nem interesse nem importância.
De vez em quando, umas vezes voluntariamente, outras obrigado, escrevo. Mas raras vezes são «comunicações» compreensíveis. Certas frases percebem-se. E há sobretudo uma cousa curiosíssima — uma tendência irritante para me responder a perguntas com números; assim como há a tendência para desenhar. Não são desenhos de cousas, mas de sinais cabalísticos e maçónicos, símbolos do ocultismo e cousas assim que me perturbam um pouco. Não é nada que se pareça com a escrita automática da Tia Anica ou da Maria — uma narrativa, uma série de respostas em linguagem coerente. É assim mais imperfeito, mas muito mais misterioso.
Devo dizer que o pretenso espírito do tio Cunha nunca mais se manifestou pela escrita (nem de outra maneira). As comunicações actuais são, por assim dizer, anónimas e sempre que pergunto «quem é que fala?» faz-me desenhos ou escreve-me números.
Mando-lhe, junta, uma amostra simples, que não é preciso devolver-me. Nesta há números e rabiscos, mas quase que não há desenhos. É o que tenho aqui à mão. É para verem como é o aspecto das minhas comunicações.
É singular que, apesar de eu não perceber nada de tais números, consultei um amigo meu, ocultista e magnetizador (uma criatura muito curiosa e interessante, além de ser um excelente amigo) e ele disse-me cousas singulares. Por exemplo, eu disse-lhe uma vez que tinha escrito um número qualquer (de quatro algarismos) de que não me recordo agora. Ele respondeu-me que havia cinco pessoas na casa onde eu estava. E, com efeito, assim era. Mas ele não me diz de onde é que concluiu isso. Explicou-me apenas que esse facto de eu escrever números era prova da autenticidade da minha escrita automática — isto é, de que não era autosugestão, mas mediunidade legítima. Os espíritos — diz ele — fazem essas comunicações para dar essa garantia; e essas comunicações são, por isso mesmo, incompreensíveis ao médium, e de ordem que mesmo o inconsciente dele era incapaz de imaginar (?).
Este meu amigo tem-me explicado outros números assim, com igual, e curiosa, segurança. Só houve três números que ele não compreendeu.
Estou contando rapidamente, e claro, e necessariamente omito pormenores e detalhes interessantes. O que narro, porém, é o essencial.
Não pára aqui a minha mediunidade. Descobri uma outra espécie de qualidade mediúnica, que até aqui eu não só nunca sentira, mas que, por assim dizer, só sentia negativamente. Quando o Sá-Carneiro atravessava em Paris a grande crise mental, que o havia de levar ao suicídio, eu senti a crise aqui , caiu sobre mim uma súbita depressão vinda do exterior , que eu, ao momento, não consegui explicar-me. Esta forma de sensibilidade não tem tido continuação.
Guardo, porém, para o fim o detalhe mais interessante. É que estou desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente, mas também de médium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam «a visão astral», e também a chamada «visão etérica». Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas. É tudo, por enquanto, imperfeito e em certos momentos só, mas nesses momentos existe.
Há momentos, por exemplo, em que tenho perfeitamente alvoradas (?) de «visão etérica» — em que vejo a «aura magnética» de algumas pessoas, e, sobretudo, a minha ao espelho e, no escuro, irradiando-me das mãos. Não é alucinação porque o que eu vejo outros vêem-no, pelo menos, um outro, com qualidades destas mais desenvolvidas. Cheguei, num momento feliz de visão etérica, a ver na Brasileira do Rossio, de manhã, as costelas de um indivíduo através do fato e da pele . Isto é que é a visão etérica em seu pleno grau. Chegarei eu a tê-la realmente, isto é, mais nítida e sempre que quiser?
A «visão astral» está muito imperfeita. Mas às vezes, de noite, fecho os olhos e há uma sucessão de pequenos quadros, muito rápidos, muito nítidos (tão nítidos como qualquer cousa do mundo exterior). Há figuras estranhas, desenhos, sinais simbólicos, números (também já tenho visto números), etc.
E há — o que é uma sensação muito curiosa — por vezes o sentir-me de repente pertença de qualquer outra cousa. O meu braço direito, por exemplo, começa a ser-me levantado no ar sem eu querer. (É claro que posso resistir, mas o facto é que não o quis levantar nessa ocasião.) Outras vezes sou feito cair para um lado, como se estivesse magnetizado, etc.
Perguntará a Tia Anica em que é que isto me perturba, e em que é que estes fenómenos — aliás ainda tão rudimentares — me incomodam? Não é o susto. Há mais curiosidade do que susto, ainda que haja às vezes cousas que metem um certo respeito, como quando, várias vezes, olhando para o espelho, a minha cara desaparece e me surge um fácies de homem de barbas, ou um outro qualquer (são quatro, ao todo, os que assim me aparecem).
O que me incomoda um pouco é que eu sei pouco mais ou menos o que isto significa. Não julgue que é a loucura. Não é: dá-se até o facto curioso de, em matéria de equilíbrio mental, eu estar bem como nunca estive. É que tudo isto não é o vulgar desenvolvimento de qualidades de médium. Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer que o Mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impor-me essa existência superior, me vai dar um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo que vem com a aquisição destas altas faculdades. Além disso, já o próprio alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa sensação de isolamento e de abandono que enche de amargura até ao fundo da alma.
Enfim, será o que tiver de ser.
Eu não digo tudo, porque nem tudo se pode dizer.
Mas digo o bastante para que, vagamente, me compreenda.
Não sei se realmente julgará que estou doido. Creio que não. Estas cousas são anormais sim, mas não antinaturais.
Pedia-lhe o favor de não falar nisto a ninguém. Não há vantagem nenhuma, e há muitas desvantagens (algumas, talvez, de ordem desconhecida) em fazê-lo.
Adeus, minha querida Tia. Saudades à Maria e ao Raúl. Beijos ao Eduardinho. Para si muitos e muitos abraços do seu sobrinho muito amigo e grato

Fernando


Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas . Fernando Pessoa. (Introduções, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Publ. Europa-América, 1986.  - 127.1ª publ. in Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de uma Geração . João Gaspar Simões. Lisboa: Bertrand, 1951.